27.2.06

Dia 5

Voltei a gritar. A noite toda fi-lo com as forças que ainda me restavam e que já não sinto!
Ninguém me ouviu...
Nas últimas horas tem me vindo á memória os jantares de familia. O meu pai, a minha mãe e a minha irmã; eu a desconversar com ela, o meu pai a querer ouvir o noticiário e a minha mãe a tentar serenar os ânimos! Quantas vezes esta cena se repetiu, algumas quase terminavam comigo e com a minha irmã a saltar para cima da mesa, mas nunca aconteceu. "Já para o quarto, os dois"! - era sempre a frase de ordem após as discussões. Fulo da vida lá ia eu de bom grado para o quarto! Perto da hora de dormir lá aparecia a minha mãe para ver como estava, se continuava exaltado ou apenas aborrecido. Acabava-nos por passar. Sabiamos que depois daquela haveria outras oportunidades. Lembro-me de um jantar de Natal, fomos passá-lo a casa de um dos meus tios, por causa do comando da televisão imediatamente arranjámos um pretexto para iniciar uma guerra, onde incluimos azeitonas e frutos secos... só abrimos os nossos presentes no dia 1 de janeiro do ano seguinte!
Sinto saudades das discussões.

26.2.06

Dia 4

Já lá vão muitas horas… horas a mais, a meu ver! Não sei o que se passa! Sinto-me só mas não me sinto com medo. Sei que não estou só, lá em cima há muita gente. Gente que quero acreditar procura por mim, tenta saber de mim.
Sempre procurei o meu espaço, preservá-lo.
Já não consigo me manter de pé muito tempo, as pernas estão fracas. O que faço? Onde raio, afinal fica este fosso que ninguém dá com ele?
Quero sair daqui!

23.2.06

Dia 3

Mas ninguém dá pela minha falta? Os meus pais? Os amigos?... Os inimigos?! Serei assim tão dispensável? E que posso fazer para ajudar? Bolas, mas quem precisa de ajuda sou eu… Não percebo.
Ontem custou-me imenso a adormecer, ora virava-me para um lado ora para outro. Que tormento! Houve uma altura em que me veio à cabeça mendigos, vagabundos, pedintes. A classe que faz das ruas a sua casa; das paragens o seu quarto; dos cartões a sua cama… tal como eles, tenho somente a roupa do corpo e a esperança.
Por diversas vezes vi tal cenário, o que me provocava algum incómodo, e até hoje nunca percebi o porquê de se deixar que pessoas durmam no frio da noite… mais do que nunca, sei o que isso é! Enquanto não adormeci, deixei me estar a observar as poucas estrelas que daqui consegui vislumbrar. Olhava-as fixamente, imaginando-me no espaço que as contém, que as envolve… No que tamanho brilho esconde e simultaneamente revela! À memória veio-me a vontade de ser astronauta… de ser novamente astronauta, e depois bombeiro e pelo meio polícia. Ser tudo o que sempre quis ser quando era mais “puto”. Julgo que o ideal seria encarnar um alpinista… seria-me mais útil!
Acabei por cair no sono mas pouco descansei. Sinto-me cada vez mais fraco, farto, sujo e impotente. Cravei as mãos nas pedras e tentei escalar até ao topo. Pedra ante pedra… nem a um palmo do chão me consegui distanciar! Engraçado… procuro alcançar “terra firme” quando na verdade estou enfiado nela! Prisioneiro dela… um autêntico hamster na roda.
Como se não bastasse a noite, hoje ainda choveu durante o dia e agora nem terra tenho, mas sim lama.
Os ténis já “perderam” a cor… e confirma-se que o castanho não me favorece!

22.2.06

Dia 2

Que noite! Acordem por diversas vezes com a sensação de ouvir ruídos. À segunda vez julgo que ouvi um barulho idêntico ao de uma moto, mas não posso confirmar porque ainda não tenho janelas… E era delas que via passar todos dias gente na rua, em frente ao meu prédio! Muitas vezes dei comigo a pensar, “esta gente anda de trás para a frente, não têm calma nenhuma”. Lembro-me das vezes que da janela do meu quarto atirava balões de água pelo Carnaval, e ria ao ver as suas reacções.
Há uma noite aqui e já me ponho a rever episódios da minha vida lá em cima, parece que vou passar o resto dela esquecido cá em baixo!
Já andam à minha procura, certamente… ou vão começar hoje. Se não for hoje é amanhã, até lá tenho que arranjar forma de chamar a atenção. Chamar a atenção, como? Gritar não adiantou de nada, fiquei com uma dor de garganta terrível.
Para falar a verdade, nem me lembro bem como vim aqui parar, excepto o motivo pelo qual sai de casa, esse está partido no meu pulso!
… Fui raptado! É isso. Adormeceram-me e atiraram-me para este fosso, vão exigir um resgate aos meus pais. Não!... Oh, meu Deus!!! Vou ser vendido aos “retalhos”. Órgãos, retiram-mos e vendem-nos. Não pode ser! Fartava-me de ouvir histórias na televisão sobre raptos e tráfico de órgãos, cheguei a um ponto que mudava de canal. Crianças raptadas, levadas para Espanha e aí vendidas a famílias que pagavam um bom preço por um “filho”. Serei eu um deles?!
Tenho que manter a calma, para isso tenho passado o dia a fazer desenhos na areia. O que eu queria era jogar na minha consola, deitado na cama e ouvir a vizinha do 4º andar a aspirar.
Nem aspirador, nem carros, nem pássaros. Não oiço nada desde que acordei!
Deitei-me com a ideia de que ao acordar não passava tudo de um sonho, ou pesadelo. Debrucei sobre mim mesmo, segurei os joelhos junto ao peito de forma a disfarçar o frio que sentia.
Não sonhei, abri os olhos e o pesadelo continuava… continua!

21.2.06

Dia 1

Vejo luz ao cimo do túnel… foi dela que vim. Foi nele que cai. Olho para cima, como tantas vezes fiz, lá em cima.
Via o céu de forma mais ampla e aberta, e não só uma nuvem de cada vez. Respirava o ar que dele vinha e agora é este túnel que mo traz.
Aqui o espaço não é muito, aliás estou em crer que descobri um novo conceito para “espaço”. Muito idêntico ao que tenho no meu quarto lá em cima, mas aí as roupas, meias, jogos, cd`s, até mesmo comida “tomam de assalto” esse espaço. Tantas vezes ouvi “arruma o quarto, está uma lástima”, e agora dava tudo para o puder arrumar. Respondia que “não tenho tempo”, e agora tenho tempo mas não tenho hipótese!
Olho à volta e o espaço exíguo é, à medida que escurece, ainda mais pequeno, acho que nem pestanejar vou conseguir… já gritei tudo! Acho que passei a tarde toda a gritar, mas também não sei se a tarde já terminou, apoio-me na escuridão que desce pelo túnel!
Já olhei diversas vezes para o relógio… partido. Era novinho, acabado de comprar com meses de poupança, se soubesse que isto me ia acontecer não o tinha comprado. Se soubesse o que ainda me está para acontecer, certamente estava mais nervoso. Mas não sei, e ainda bem!
Acho que não parti nem desloquei nada com a queda. Umas escoriações e uma enorme dor de cabeça e costas, tirando isto estou óptimo. Aliás, não podia estar melhor aqui em baixo! O pior é se lá do cimo decide chover. A terra aqui já é suficientemente húmida, mais umas gotas e transforma-se em lamaçal, certamente nem este blusãozito de marca me salva.